"Ti Ana, para que fez Deus as moscas?", assim perguntava a criança à tia que tentava adormecê-la.
"Escuta, meu menino. Havia uma velhinha que, sentada ao sol,ou perto da lareira, na varanda ou no jardim...se aborrecia de morte. Não tinha com quem conversar, já não podia fazer meia nem renda, filhos e netos andavam por fora...e, então, rezou e pediu a Deus que lhe desse com que se entreter. E Deus deu-lhe as formigas. Estas eram atrevidas, entravam em tudo que fosse doçura e faziam muitos estragos. Entretanto a velha, cansada de as perseguir com a sua bengala, pediu na botica uns pós mágicos que afugentassem aqueles bicharocos incomodativos. E eles foram-se, voltando a velha à monotonia de seus dias.Arreliada, voltou a rezar "Senhor, dai-me algo para ocupar a minha solidão!" E Deus deu-lhe as pulgas. Estas atacaram o cão, os gatos e acabaram por se meter nos folhos da saia da velha, fura aqui, salta acoli...e pica em todo o lado! Bem se esforçava a velha por se livrar delas...mas aparecia sempre mais uma... Foi então que resolveu aquecer um caldeirão de água, encher a enorme bacia de zinco, procurar uma barra de sabão...e tomar um belo banho, lavando de seguida toda a roupa. Arejou a casa, pôs lençóis e cobertores ao sol, vestiu-se de lavadinho...e, em breve, estava outra vez sentada na sua cadeirinha sem nada fazer, muito, mas mesmo muito entediada. Mais uma vez, pediu "Senhor, dai-me com que ocupar os meus dias". E Deus fez-lhe a vontade e... criou as moscas!
Resposta pronta do menino, na inocência dos seus quatro, cinco anos "Ti Ana, rais partam-na velha!"
O menino era o meu Pai e a tia uma das irmãs de meu Avô Nicolau.
No dia de hoje, há muito,muito tempo, terminava eu a minha Licenciatura. Durante trinta e sete anos partilhei o que aprendi com dezenas de jovens. Uma vez aposentada, filhos encarreirados na luta por um lugar ao sol, netos preciosos a aprender a ser gente, não me sinto - ainda! - como a velha da história...Já hoje desempenhei, vagarosamente é certo, uma molhada de tarefas domésticas, já tratei de mim (!), lavando o cabelo e enrolando-o, para acamar, como antigamente fazia a minha Mãe ( ai como me vou parecendo com ela cada vez mais, a cada dia que passa!), visitei uma jovem mãe e o seu bébé recém-nascido, "emprestei" meus ouvidos para ouvir a neta preparando uma peça nova na guitarra, vi um belo filme na tv, li mais umas páginas de "A Curva do Rio"... O dia ainda não terminou... E rezo "Senhor, que eu possa sempre dar graças pela monotonia de meus dias! " É que a educação que recebi e... a vida... me ensinaram que ocupar a cabeça e as mãos é a melhor forma de resistir ao tempo, "enganando" a velhice tão próxima.