Sem computador...não houve registos no passado mês...Mas, na cabeça as ideias surgem, enovelam-se, embaralham-se...querem à força um lugar visível...É este o bichinho, pôr por escrito o que nos atrai, revolta, ou vem à memória.
O contraste entre a vida num apartamento da cidade e uma "casa de brasileiro" , um casarão, numa aldeia serrana, é enorme, saudável, gratificante em quase tudo, maugrado a "trabalheira"... Os primeiros dias são para arejar, espanejar, reencontrar o sítio das coisas...Logo depois chega a família, que traz amigos. E o "casarão" já não chega , é pequeno, enche-se de vida e reboliço, que a nossa cadela acompanha em algazarra e correrias - o que não admira, pois o resto do ano é solitário. E logo estão de partida para outra aventura, deixando a casa ,de novo,em silêncio.
Esta casa "fez-se" com a participação de muita gente. Dezenas de anos antes de mim, não tenho ideia como foi planeada, construída, mobilada, "inaugurada". Sei que reunia a família, que era numerosa,como provam a mesa "de esticar" pela possibilidade de inserção de várias tábuas,as enormes toalhas gastas pelo uso, os muitos talheres, restos de serviços de louça de Limoges e da Vista Alegre, copos de pé alto...E mais de uma dúzia de cadeiras de palhinha.
Temporadas da minha infância ali vividas obrigam-me a comparações com "estes tempos". Recordo não apenas a família, mas também os que a serviam: o criado da lavoura, a cozinheira, a empregada "de dentro" e, no fim de vida de meu Avô Nicolau, que já não conheci, a miúda que o guiava na sua cegueira. No meu tempo, havia a Clementina, "pau para toda a colher", mulher feita, solteirona,humilde, dedicada,de certa forma parte da família, pese embora o muito que trabalhava em prol dela.
Pelas seis da manhã já estava a pé. Vestia a roupa de trabalho e fazia o seu "mata-bicho": broa e café, isto é, cevada - que o café faz mal aos nervos...De seguida, "matabichavam" os bichos: o grande boi dourado de olhos meigos, as duas cabras , que forneciam o leite necessário, os porcos e as ninhadas - quando as havia - patos e aves de capoeira...tudo era "tratado".
Pelas sete e meia, substituído o aventalão de riscado escuro por outro, lavado, geralmente branco, atarefava-se na cozinha a preparar o pequeno almoço dos "senhores": fervia o leite em fogo de lenha, torrava o pão da véspera, preparava o tabuleiro e, pelas oito e tal, batia à porta, dava os bons dias, abria as janelas...servia...e "recebia as ordens" para o dia...Ram-ram desnecessário, ao fim de quase trinta anos, uma mala de roupa e um enxoval, uns tostões ciosamente poupados ao longo de uma vida de trabalho...
Um dia, um irmão distante aparece com um "convite" para ir para Lisboa...Irresistível!
Tive mágoa de saber que acabou só, na sua casita de aldeia, bem longe da cidade grande.Fica a memória da partilha da sua sopa de feijão vermelho ao pequeno almoço ( em vez do leite que o estômago rejeitava) e das partidas de Carnaval que lhe pregava e que os meus oito anos inocentes levavam a cabo com a complacência de todos... incluindo a própria. Obrigada, Clementina.
Nestes tempos, não há pessoal permanente. Também não há bichos nem terras lavradas. Apenas a fiel guarda da casa, que ladra avisando que está alerta, e as silvas que invadem a terra que produziu milho, azeite, legumes e fruta para os da casa e os de fóra...É com alguma angústia que, todos os anos, me confronto com esta realidade. Dentro de casa, faço de tudo um pouco sem problemas; no jardim, passo o tempo mais aprazível, na esperança de ver brotar os lírios cor de rosa que invadem e perfumam as bordas dos canteiros a partir de fins de Agosto.Aos poucos, a casa vai estando em obras de restauro e conservção - que alívio, quando chegarem ao fim! E ainda tenho um sonho: vou mandar roçar as silvas e plantar árvores. Será que terei tempo para as ver crescer?...
Férias? Que férias?...